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Definindo inteligência

O que vem à sua mente quando se fala em inteligência? Em uma sociedade dominada pelos europeus, aprendemos que inteligência é algo que não pertence a pessoas pretas. Afinal, quem teve o poder de definir o que é considerado inteligência? O racismo também nos afeta nessa lugar. Somos animalizados pela supremacia branca e, portanto, na visão por eles imposta, não cabe a nós a inteligência medida por um QI (quociente de inteligência) branco.


Mas será que europeus e africanos percebem inteligência da mesma forma? Mostraremos algumas pistas que indicam que não. Como afirma Amos Wilson em A psicologia do desenvolvimento da criança preta, "a criança preta não é uma criança branca pintada de preto".



Os Baoulé e a inteligência


O Povo Bauolé (Baúle) é um subgrupo dos Akan que habita hoje o território da Costa do Marfim. Originalmente, esse povo habitava o território do Império Ashanti, onde hoje fica Gana. Quando o rei Ashanti Osei Tutu morreu iniciou-se uma guerra de sucessão, levando à morte de Dakon, sobrinho do rei e irmão de Abla Pokou, mulher que viria a ser a rainha dos Baoulé. Preocupada com sua vida, dado o parentesco com Osei Tutu e Dakon, Pokou fugiu com todas as pessoas que eram leais a Dakon. Em uma caravana, foram em direção a um território em que atualmente fica a Costa do Marfim.



Uma lenda conta que ao chegarem ao rio Comoé Pokou ofereceu seu filho como sacrifício para conseguir atravessar as águas. É pouco provável que isso tenha acontecido, já que há outras fontes que indicam que no período da travessia o rio Comoé estava com as águas baixas, sendo possível atravessá-lo tranquilamente a pé. Após a morte da rainha Pokou, houve uma sucessão matrilinear.


Atualmente, o povo Baoulé (Baúle ou Bawule) é um dos maiores povos da Costa do Marfim. Eles tiveram um papel central no país durante o século XX. Fizeram grande resistência aos franceses, especialmente entre 1891 e 1911, sendo considerada uma das resistências mais prolongadas. Mantiveram seus objetos e crenças tradicionais por mais tempo que muitos outros povos.


Nyamien é o criador de tudo. O mundo terrestre é composto por seres humanos, animais e plantas, bem como seres sobrenaturais com poderes que residem em elementos da natureza: montanhas, rios, florestas, rochas etc. Os ancestrais Baoulé recebem devoção e adoração das pessoas vivas, mas não há representações deles. Tem especial destaque a descendência materna, já que tradicionalmente trata-se de uma configuração social matrilinear. Cada pessoa veio de um mundo espiritual anterior ao mundo terrestre.


A arte é sofisticada e com diversos estilos. Possuem tipos de escultura que nenhum outro grupo Akan possui. Esculturas e máscaras de madeira permitem um contato mais próximo com o mundo sobrenatural. Muitas artes apresentam penteado detalhado e dividido em tranças.



Como vários outros povos de origem Akan, os Baoulé podem nomear as crianças a partir de dias da semana ou de circunstâncias da natureza ou da comunidade no momento do nascimento.


Uma pesquisa realizada por Pierre Dasen apresenta o que os pais Baoulé descrevem como expectativa de inteligência em uma criança conforme ela vai se desenvolvendo. Usa-se a palavra n’glouèlê para inteligência. Foram usadas expressões como resposta. O quadro abaixo apresenta os principais resultados do estudo:

Observe a escala do que aparece com mais importância e menos importância na visão dos pais entrevistados. Aquilo que se descreve como inteligência, para os Baoulé, vai muito mais na direção de componentes sociais e comportamentais da criança em favor da comunidade. Os aspectos cognitivos aparecem integrando o contexto desde que usados para o bem coletivo e não para a promoção individual.


"Cada componente pode ser ilustrado por vários exemplos e anedotas. Por exemplo, uma criança que é o ti kpa pode ser uma menina que chega em casa sozinha do campo, descobre que os pratos ainda não foram lavados, toma a iniciativa de lavá-los e então começa competentemente a preparar os legumes para a próximo refeição".



Inteligência direcionada à comunidade em toda a África


Vários outros estudos feitos em África sobre a concepção de inteligência dentro do contexto cultural revelam resultados parecidos.


A. Bame Nsamenang destaca em um estudo sobre desenvolvimento e inteligência que os pais africanos esperam que os filhos assumam responsabilidade social. Fala-se cognição social, inteligência social ou inteligência responsável. A socialização se dá para a cultura ancestral e para competências sociais, para a responsabilidade compartilhada com o sistema familiar e a comunidade étnica, não para o treino acadêmico ou individualidade fora desses valores.


Nsamenang ainda destaca que para compreender a cognição social e o comportamento inteligente dos africanos o olhar deve ir às rotinas compartilhadas e aprendizagem participativa ao invés de instrumentos baseados na escola. Poderíamos ainda relacionar esse ponto ao que o professor chama de "a criança como agente".


Outros povos africanos têm similaridade na importância dos componentes sociais da "inteligência". Veja alguns:

Percebemos que há uma amplitude muito maior do que o conceito ocidental de inteligência. Uma observação próxima dos povos africanos em diáspora permitirá notar que grupos que conseguiram manter de alguma forma a cultura viva mantém aproximações com essas e outras definições africanas de inteligência do cotidiano, da resolução de problemas, da vida concreta em um contexto comunitário.



O que fazer com outras percepções de inteligência?


Por um lado, perceber o que nós mesmos produzimos e concebemos como inteligência, em nossos próprios termos, pode libertar uma mentalidade colonizada de auto ódio e depreciação por "não sermos inteligentes" diante dos padrões europeus. Permite até mesmo ultrapassar a palavra "inteligência" para utilizarmos outras.


Ao mesmo tempo isso não significa negar nossa capacidade intelectual, cognitiva, racional. Somos os criadores primários de civilizações, tecnologias, ciências, artes e técnicas de tudo no planeta. Porém, é possível reposicionar a importância reducionista dos aspectos extremamente racionalistas supervalorizados na definição colonizadora de inteligência. "Inteligência", para nós, não é só cognição, mas também a inclui em seus mais altos níveis.


Como diz Amos Wilson em Despertando o gênio natural da criança preta, devemos "olhar para Áfrika como a fonte de compreensão de nossos filhos - e não a Europa". Isso implica em considerar nossas concepções originárias de tudo, mas também analisar a realidade de nosso povo hoje de modo a saber operar em nosso próprio favor, possibilitando o alcance do maior potencial possível de nós mesmos e de nossas crianças e adolescentes.



Referências:








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