Na ânsia de encontrar elementos de força na longa trajetória histórica africana, muitas vezes nos apegamos somente aos grandes Impérios e Reinos com seus Reis e Rainhas. Sem negar a importância de tais imagens, também encontramos valores e civilizações no cotidiano de diversos povos "sem reino". Será que reconstruir a narrativa sobre África é restringir-se ao que se considera hoje como "grandes feitos"?
Nomes como Kemet, Mali, Gana, Kush, Mapungubwe e Kongo nos remetem a grandes reinos durante o período imperial africano. O valor do estudo de grandes civilizações e suas organizações políticas e econômicas é grande. Retomar nossa história milenar no continente com as figuras de líderes - seja por nome de Candaces, Faraós, Manicongos ou Ngolas - é fundamental e ajuda a construir hoje um autoconceito ancorado em nossas próprias raízes.
Não precisamos inventar reis e rainhas de cor preta, nem "empretecer" brancos, pois é longa a lista de lideranças parecidas conosco que de fato existiram. Não à toa Cheik Anta Diop destacou a importância do estudo da civilização de Kemet (hoje chamado de Antigo Egito) para a recentralização do papel africano no mundo, já que é sabido que deste local partiram muitas das principais contribuições para o desenvolvimento humano em todo o mundo. Apesar das tentativas de branquear o povo de Kemet, Diop provou que a maior civilização existente no planeta era composta por pessoas pretas.
Conhecer as histórias destes grandes impérios é fundamental. John Henrik Clarke afirma que a história tem o poder de ensinar "um povo a usar seus próprios talentos, ter orgulho em sua própria história e amar suas próprias memórias". Mais do que isso, como diz Amos Wilson, há uma relação direta entre a manipulação da história e a supremacia branca. Segundo ele, "a reescrita, a distorção e o roubo da nossa história devem servir a funções econômicas, políticas e sociais vitais para o europeu". Reforçando o papel da história para nossa consciência e libertação, Steve Biko fala que "um povo sem história é como um veículo sem motor".
Diante de tudo isso, só podemos concordar com Drusilla Dunjee Houston ao dizer as palavras de encorajamento que servem para todo o povo preto no mundo: "Levantem a cabeça, desencorajados e oprimidos os etíopes. Ouçam essa história maravilhosa contada de seus ancestrais, que trabalharam poderosamente para a humanidade e construíram os alicerces da civilização verdadeira e justa nos dias de antigamente”.
Porém, a história africana, a nossa história, não se reduz aos grandes feitos, aos gigantes reinados pretos. Walter Rodney alerta que houve uma preocupação na historiografia em exaltar o estado político altamente desenvolvido de África, levando a tratar casualmente os estados menores, ou o que poderia ser chamado de "sociedades apátridas", isto é, organizações sociais em que a entidade político-econômica não vai além da família. Em outras palavras, a "vida comum" distante dos reinos muitas vezes acabou sendo menosprezada.
Rodney diz: "Na reconstrução das Civilizações Africanas, a preocupação é indicar que a vida social Africana tinha significado e valor, e que o passado Africano é aquele com o qual os homens pretos nas Américas podem se identificar com orgulho".
O pensamento de Walter Rodney se desenvolve para dar destaque à importância de considerar valores e formas de sociabilidade no cotidiano que não esteve historicamente sob o governo de impérios. Ele aponta aspectos como hospitalidade, papel e tratamento dos idosos, lei e ordem pública, tolerância social e espírito de caridade.
"Em qualquer vila ou região, os códigos de hospitalidade e o espírito de caridade impediam os extremos da pobreza e abandono que se encontra em sociedades mais ricas e supostamente mais maduras. A Família Africana Estendida era em si mesma uma agência de ajuda mútua e bem estar [...] Por causa do Sistema de Família Estendida e da hospitalidade universal, felizmente os idosos estavam livres dos problemas de sustento. Eles desempenhavam papéis socialmente gratificantes e autorrealizados dentro de suas comunidades".
As evidências e tradições orais mostram que diversos povos que não construíram grandes estados como Songhay, Ifé, Kongo ou Monomotapa criaram condições positivas para a vida em comunidade, "não estavam mergulhados na escuridão", como afirma Rodney. A tendência a valorizar os grandes estados africanos, para Walter Rodney, pode se relacionar ao mito ainda presente de muitos pretos: "O medo deles é que a África que eles deixaram seja de selvageria primordial; eles visualizam pretos parecidos com macacos balançando de árvore em árvore; e ouvindo as lambidas nas costeletas canibais. Para dissipar esse mito, é invariavelmente necessário começar apontando que a África também tinha grandes edifícios e grandes estados semelhantes aos que surgiram na história daqueles países onde residem nossos opressores e denegadores brancos".
Mas, se prender a esse tipo de pensamento pode ser problemático. Primeiro porque, se partimos da premissa de que precisamos de gigantescas evidências de reinos para provar a brancos - ou ao pensamento deles implantado em nós - que África não é selvageria, e que, por isso somos humanos, por isso devemos ser respeitados, por isso devem nos aceitar... se isso acontecer, é porque já aceitamos a ideia de sermos inferiores. Segundo porque partiríamos da ideia de que nosso valor enquanto povo está apenas na equiparação a uma métrica do que é considerado como "grande" ou "importante" pelos brancos, ou seja, usar o olhar do opressor para supostamente valorizar a nós mesmos.
Voltando a Walter Rodney, temos o alerta de que seguir o pensamento acima exposto leva a "cair na armadilha de acreditar que o estado político é a única forma significativa de desenvolvimento social e por isso sentir-se confuso enquanto homem preto, porque a Europa perseguiu esse modelo ao máximo nos séculos seguintes enquanto a África não o fez".
Para esse mais velho, assim como para muitos outros estudiosos, europa e África seguiam cursos diferentes de desenvolvimento, com distintos modos de ser, tendo a europa uma direção de acumulação, capital e mercado enquanto África caminhava para um crescimento cultural e com distribuição de bens. A direção africana para a civilização humana foi interrompida pela invasão anárquica, exploratória e injusta dos brancos. Mas a preocupação com a vida humana em sua multidimensionalidade era imperante no continente africano nos imensos estados, assim como nos distintos povos habitantes dos territórios sem organização política semelhante a um estado ou reino.
Steve Biko, ao sistematizar as ideias da Consciência Preta, apresenta algo semelhante ao que Rodney disse sobre a direção civilizatória africana. Biko fala da centralidade dos elementos culturais africanos para a libertação preta; destaca dentre esses princípios: a existência coletiva e o interesse por partilhar a vida; a centralidade do ser humano; a propriedade comunitária; a inexistência da pobreza. Retomar elementos como esses em nossa história não se resume a exaltação de grandes impérios. Precisamos entender, como diz Walter Rodney, que "a vida Africana comum tem significado e valor".
Nesse sentido, entendemos que valores como aqueles ressaltados nos Nguzo Saba falam também desse lugar cotidiano, mostram mais do que apenas os grandes feitos imperiais, apresentam princípios de vida africanos elaborados na família, na comunidade, isto é, na vida comum, e não necessariamente nos grandes estados política e economicamente organizados. Os aspectos que Rodney apresenta sobre o comportamento social africano no dia a dia, principalmente a partir da Família Estendida, dialogam bastante com Umoja (Unidade), Kujichagulia (Autodeterminação); Ujima (Trabalho Coletivo e Responsabilidade); Ujamaa (Economia Cooperativa); Nia (Propósito); Kuumba (Criatividade) e Imani (Fé). Quando nos deparamos com aspectos históricos e culturais de diferentes povos e seus modos de ser, também percebemos relações com os Nguzo Saba, mesmo sem serem nomeados.
É fundamental refletir sobre a importância que temos dado à vida africana para além dos impérios. Como diz Walter Rodney, "uma visão geral das Civilizações Africanas Antigas e das Culturas Africanas Antigas é necessária para eliminar os mitos sobre o passado Africano, que permanecem nas mentes dos pretos de todos os lugares". Em outras palavras, entendemos a necessidade de equilibrar os "grandes feitos" civilizatórios com os também "grandes feitos" culturais vividos longe dos holofotes de reinos e impérios.
Para exemplificar, não há que se pensar em hierarquia de valor entre Mansa Musa, do Mali - o homem mais rico do mundo, que era africano - e um homem que cuidava de sua família em uma comunidade "sem estado" no sul da África. Afinal, ambos caminhavam na direção mais importante para os africanos: o crescimento do ser humano (coletivo), e não somente de suas posses.
E essa conversa não é apenas sobre o passado em vilarejos remotos. Africa está viva e pulsante hoje. Talvez toda essa reflexão sirva para imaginar - e realizar - nossa história no cruzamento passado-presente-futuro em prol da continuidade da grandeza de nosso povo dimensionada em todos os seus sentidos e valores, e não somente na medida imposta pelos brancos. As miudezas cotidianas de nosso povo tem muito a nos ensinar.
Texto escrito por Dlaman Kobina
Referências:
Walter Rodney - História Africana a Serviço da Libertação Preta, em Pensamento Preto volume 4, da Editora Filhos da África.
Amos Wilson - A Falsificação da Consciência Afrikana, da Editora Poder Afrikano.
John Henrik Clarke - Pan-Africanismo, Poder Preto e História Preta, da Editora Ananse.
Steve Biko - Escrevo o que eu quero, da Editora Kisimbi.
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