Brenda Nokuzola Fassie pode ser considerada como uma das grandes artistas na luta contra o Apartheid na África do Sul. Ela nasceu em 3 de novembro de 1964 em Langa, uma Township próxima à Cidade do Cabo. Brenda era a mais nova de 9 irmãos e seu pai era pianista. Teve contato com a música desde pequena e, por isso, desde então exercia seus talentos vocais junto com a mãe, que era cantora. Há relatos de que ela fez sua primeira apresentação musical com 4 anos de idade. Aos 5, conta-se que ela cantava em praças e turistas deixavam dinheiro.
Quando tinha por volta de 16 anos, recebeu a visita de Koloi Lebona, renomado produtor musical de Joanesburgo. Ele considerou que ela tinha "a voz do futuro" e a convidou para mudar-se para Soweto e, assim que finalizasse os estudos, ingressaria na carreira musical. Mas as coisas aconteceram mais rápido do que se imaginava e logo Brenda estava substituindo uma cantora do trio Joy que havia saído de licença maternidade. Desse momento em diante, a carreira de Brenda começou a crescer.
A primeira gravação de Brenda aconteceu em 1983 com seu grupo Brenda and The Big Dudes. A música escolhida foi Weekend Special, tornando-se o disco mais vendido da época.
A música teve um grande alcance, inclusive internacional, levando Brenda e seus colegas a uma turnê que incluiu Estados Unidos, Grã-Bretanha, Austrália e Brasil. A cantora começou a destacar-se também como estrela solo e aos poucos construiu uma carreira dessa forma.
Conquistou diversos prêmios e teve seus discos entre os mais vendidos de toda a África do Sul. Suas músicas falavam de questões do cotidiano, de afetividade, mas também enfrentavam o racismo e os problemas causados pelo domínio branco no país. É o caso da música Shoot them before they grow, sujeita a muitas análises que, inclusive, podem ser conflitantes.
Os temas políticos sempre estiveram presentes na carreira de Brenda, mas também questões culturais, espirituais e estéticas vindas das tradições africanas. Um ponto interessante é que no decorrer de sua vida, aos poucos ela começou a cantar mais em línguas originais e não em inglês.
Ubuntu na música de Brenda Fassie
Quando a artista faleceu em 2004, algumas pessoas chegaram a afirmar que "ela tinha Ubuntu". A verdade é que Brenda valorizava sua africanidade e imprimia em suas letras e videoclipes conceitos próprios dos sistemas de vida e pensamento dos povos sul-africanos. Uma música chama atenção nesse sentido e faremos uma breve análise da profundidade que ela traz: Umuntu ngumuntu ngabantu.
Para começar, "Umuntu ngumuntu ngabantu" é um provérbio existente nas línguas dos povos Xhosa e Zulu e, de acordo com o filósofo sul-africano Mogobe Ramose "Embora que na língua portuguesa não possa ser exaurido o significado desta máxima ou aforismo, ela pode, entretanto, ser traduzida para significar que ser um humano é afirmar sua humanidade por reconhecimento da humanidade de outros e, sobre estas bases, estabelecer relações humanas com os outros". A palavra Ubuntu tem sido usada em referência a esse provérbio e à cosmopercepção que o próprio termo Ubuntu carrega.
Agora, vamos à letra da música. Se você ainda não ouviu, volte e dê play antes de continuarmos.
Brenda inicia a música declarando o orgulho de pertencer ao continente. Reconhece que é quem é por conta desse fator: "Obrigada, minha África. Eu não seria o que sou sem você!" Basicamente: "sou porque sou parte de África, com tudo que ela é, não existo fora dela".
Ao declarar "Obrigada, irmãos e irmãs, levantando-se atrás de mim por todo o caminho", reconhece que ela não estaria ali sem outras pessoas que antes dela vieram e se mantiveram de pé diante da opressão, mas também todas e todos aqueles que a antecederam em sua família para além do tempo colonial.
Aliás, o termo usado é "behind" - "atrás", indicando mais uma ideia de posição do que de tempo em relação a seus antepassados. Ou seja, os irmãos e irmãs não estão em um lugar antigo, imóveis, mas por detrás dela. Ela só é porque eles(as) são e, na frase, anuncia a existência deles (as) em primazia à menção de si mesma. Estando nesse lugar, ela percebe: "Isso me dá esperança e força".
E então aparece o que, talvez, seja de fato o ponto alto da letra: "E isso tudo é porque umuntu ngumuntu ngabantu". Ou seja, tudo o que ela disse anteriormente: "África faz eu ser quem sou"; "os que estão atrás de mim fazem eu ser quem sou"; "a força que tenho vem de outros(as)". Isso tudo só acontece porque "umuntu ngumuntu ngabantu"! Você lembra o significado dessa frase?
"Umuntu ngumuntu ngabantu" é um provérbio do povo Zulu e Xhosa de difícil tradução para outras línguas. Afinal, cada língua carrega em si uma concepção de mundo única, que muitas vezes não encontra correspondência na tradução. Uma tentativa de tradução significa "uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas".
Voltando à música, Brenda está dizendo que tudo que ela é, só é por conta de sua existência ganhar vida ao ser atravessada pela existência de outras pessoas. Isso é UBUNTU!
A canção repete muitas e muitas vezes "umuntu ngumuntu ngabantu", mostrando que todo o sentido do restante da letra se centraliza nessa expressão, sintetizada pelo termo Ubuntu. Então, Ubuntu, na música, "condensa" a ideia de um ser não individual que, ao mesmo tempo:
é África e o que ela contém (natureza, cultura, tecnologia, ciência, espiritualidade etc.);
é as outras pessoas que vieram antes/atrás (ancestrais) - não é "com" essas pessoas, entendidas de forma separada, é elas;
é força pelo amor que flui de África e o que ela contém e das pessoas que vieram antes/atrás.
A música de Brenda traz, dessa forma bastante poética, direta e melódica a cosmopercepção bastante profunda de Ubuntu para si e para seu povo de origem Bantu.
Essa análise leva a pensar como é muito fortalecedor para nós, pessoas pretas, a valorização do legado artístico, cultural, espiritual e histórico de Brenda Fassie. Sua passagem aconteceu quando era ainda bastante jovem, aos 39 anos, e as evidências são de que ela sofreu de uma overdose que ocasionou parada cardíaca. A partida desse modo leva à reflexão sobre o quanto o sistema opressor racista no qual vivemos é adoecedor em todos os níveis, nos desumaniza e leva muitos de nós a condições de autodestruição. Precisamos fortalecer a energia viva que está em nós e em tudo ao nosso redor - Ubuntu - para seguirmos vivendo e construindo para a posteridade. A musicalidade deixada por Brenda inspira a isso!
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