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A criança como agente: uma perspectiva africana de desenvolvimento infantil

Foto do escritor: amandlaafkamandlaafk

Esse texto soma às tentativas de construir outras referências para entender a criança preta/africana e suas potencialidades. Trata-se de um resumo do trabalho "Agency in Early Childhood Learning and Development in Cameroon" publicado em 2008 pelo pesquisador camaronês A. Bame Nsamenang.



Esse autor tem diversas publicações sobre desenvolvimento infantil e educação desde uma perspectiva africana. Seus estudos trazem para o diálogo pedagógico diferentes elementos de povos africanos e suas práticas e concepções tradicionais no que se refere à criança e sua educação. No texto citado, ele fala sobre agência infantil, especialmente a partir do aprendizado com o povo Nso, que vive na região nordeste de Camarões.



A importância das crianças na comunidade


O pesquisador começa afirmando que muitos países da África subsaariana tem pelo menos 60% da população composta por crianças e jovens. Esse quantitativo tem grande importância para a vida das sociedades. Porém, a participação produtiva desse grupo na vida comunitária foi estigmatizada pelo "direito internacional" como sendo trabalho infantil. Ao deslocar-se das tradições para ceder à pressão ocidental, perde-se a produtividade desse grande grupo de pessoas: crianças e adolescentes.


A concepção de criança adotada pela globalização europeia difere das tradições africanas. O Ocidente trata as crianças e adolescentes como dependentes econômicos, sem iniciativa e maturidade suficiente para agir com autodeterminação e exercitar sua autoexpressão. Além disso, o cuidado infantil é visto como sendo uma especialidade única dos adultos.


Diferentemente, a cultura africana, apesar de separar a aprendizagem das crianças do estágio adulto, posiciona o cuidado dos irmãos como sendo uma importante tarefa doméstica para o desenvolvimento da pessoa. Assim, "as crianças africanas são parceiras significativas na vida familiar e nas questões comunais de proteção e cuidado infantil" (p. 212). Mais do que isso, as crianças vivem - e são entendidas - como agentes.


Agência das crianças Nso


O estudo de Nsamenang com as crianças do povo Nso, do nordeste de Camarões, mostra uma infância com agência para o próprio aprendizado desenvolvimental. O autor define agência como um "fenômeno social que é parte do desenvolvimento natural da criança como membro da família, do grupo de pares e da comunidade" (p. 213). Nesse contexto social, as crianças se tornam agentes para cooperar, comunicar e exercer influência em diferentes estágios de amadurecimento. A implicação disso é que a criança não está à espera de um estado de prontidão para ter agência sobre si e sua realidade, mas tem essa orientação nos diferentes momentos de desenvolvimento.


O Ocidente coloca a infância como um paraíso protegido, segregado da realidade dura dos adultos, um lugar seguro que é o mundo da brincadeira, fantasia e inocência. A imaturidade biológica da criança é um fato, mas as formas de entender e significar essa imaturidade são fatos da cultura, ou seja, não são universais.


Com a âncora conceitual da agência, entende-se as crianças como construtoras de conhecimento por meio de esforços próprios e ações no mundo. As "crianças são parceiras iguais na interação humana desde o nascimento [...] alcançam ativamente as pessoas para criar relacionamentos que atendam suas próprias necessidades sociais e emocionais" (p. 213).


A criança, portanto, não é percebida como dependente e incapaz, mas sim como ativa e criadora de suas próprias ações de forma automotivada. Nsamenang usa o termo protagonismo para definir a criança como ator principal e ativamente envolvido na práxis de seus próprios direitos. A criança não ficará à espera, à mercê dos adultos, mas terá papel de agente nas diversas situações.


Família extensa e infância


Nsamenang traz a importância da família extensa do povo Nso para a ecologia social da infância. Com a família extensa, percebe-se o alcance social e interativo da criança Nso, que faz várias atividades economicamente produtivas. Além disso, o grupo de pares (outras crianças) torna-se o cuidador e socializador mais acessível da criança.


Natureza da criança


A natureza da criança é percebida desde um conceito teocêntrico, entendendo que a criança é um presente divino. Considera-se que a criança tem potencial genético para autogeração e aprendizagem automotivada. A gravidez é vista como um presente divino também, além de acrescentar força à família. A criança é concebida como uma semente cultivada até se tornar uma muda em um jardim com jardineiros de várias habilidades e idades, que serão as pessoas de todas as idades ajudando no cuidado.


"A metáfora africana para criança é ‘semente’, nutrida em uma muda e cultivada em fruição em um jardim sociológico em que os papéis são compartilhados entre jardineiros de várias idades e habilidades mistas. Os pais Nso preparam suas próximas gerações a partir de um posicionamento em que os filhos nascem sem conhecimentos e habilidades para entender e lidar com o mundo, e de uma consciência da capacidade maturacional das crianças crescerem ou aprenderem conhecimentos e habilidades" (p. 216).


Processos de desenvolvimento da criança


O povo Nso organiza programas parentais para que a criança aprenda em meio às atividades de subsistência e tarefas simbólicas. As pessoas vistas como jardineiras aprendem e ensinam ativamente a jardinagem, podendo criar e modificar o currículo cultural nesse contexto.


"O desenvolvimento e a aprendizagem podem ser aprimorados por meio de processos de nutrição, cultivo, socialização, educação e mentoria, não apenas por pais e outros adultos, mas também por esses pares mentores" (p. 216). Sendo assim, a comunidade de crianças é um elemento fundamental no desenvolvimento da agência infantil.


Nsamenang pontua que a cultura de pares africana difere do que Vygotsky propõe, já que seu conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal se refere mais à relação adulto-criança. A cultura de pares africana aponta um espaço criança-criança.


Agência infantil não representa individualismo. Pelo contrário, a identidade e a individuação tem caráter poli e não mono. Existe uma ênfase no compartilhado e no social ao invés do único e individual. Até filhos únicos tem interlocutores sociais frequentes.


Nesse contexto, as estratégias pedagógicas na comunidade são participativas: nas tradições familiares, nas rotinas cotidianas, nas redes sociais e na vida comunitária. "A partir desses ambientes de atividades, as crianças extraem inteligências sociais, afetivas, cognitivas e outras inteligências situadas" (p. 216). Vale assinalar que "inteligências situadas" se refere ao entendimento de que há diversas inteligências e que cada uma delas tem seu contexto e posicionamento na pessoa.


Considerações


Considerar a agência leva a não oferecer respostas diretas, mas colocar a criança desde cedo a observar, aprender e entender a realidade. Também impulsiona uma pedagogia participativa com pares infantis de mentores/tutores mais competentes. Além disso, relaciona-se a uma versão originária do trabalho infantil como modo africano de integração social e treino de responsabilidade sem abusos.


O pesquisador retoma o trabalho da criança como um modo africano essencial de preparo da próxima geração. É necessário para a família e para a criança, que é encorajada à independência já em tenra idade por meio da realização de coisas difíceis por ela mesma. A escola ocidental implementada na África corrói essa responsabilidade que a família africana induz nas crianças ao tentar proteger seu mundo supostamente paradisíaco.



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6 Comments


SUELLEN Cerqueira
SUELLEN Cerqueira
Feb 17, 2022

Uau !! Me fez refletir como nossa concepção sobre criança (e seus agenciamentos)foi pautada no pensamento eurocentrico, reforçado nas teorias que aprendemos na faculdade (Piaget, Vygotski)

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amandlaafk
amandlaafk
Feb 19, 2022
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Sem dúvidas muito dessas teorias devem aos povos africanos e seus modos de entender e viver os processos de desenvolvimento. Precisamos aos poucos retomar a centralidade de nossas narrativas e teorias para pensar sobre nós mesmos, né? Que bom que o texto provocou essa reflexão.

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Carolina Azevedo
Carolina Azevedo
Feb 16, 2022

Obrigada por essa contribuição!

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amandlaafk
amandlaafk
Feb 19, 2022
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Vamos juntos!

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taysynha18
Feb 15, 2022

Excelente síntese. 🥰

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amandlaafk
amandlaafk
Feb 19, 2022
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😘

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